Você já parou pra pensar no exato significado da palavra dignidade? Imagine que você está conversando com alguém que nunca ouviu essa palavra, como você explicaria?
Na boca do povo, a dignidade tá lá em vários memes:
E nas manchetes de jornal, ela também tá sempre presente:
Já o dicionário nos traz a seguinte definição:
Perceba que a palavra respeito aparece 2 vezes atrelada à dignidade: aquele que incita respeito e aquele que respeita a si mesmo são indivíduos DIGNOS. Ou seja, a dignidade é uma via de mão dupla, vem de fora pra dentro e de dentro pra fora; é respeitar seus valores internos e também gerar respeito externo dos outros por você.
Quem foi longe na busca pela dignidade é o mordomo Stevens, personagem principal do livro “Vestígios do Dia”, lançado em 1989. Nesta obra, o escritor Kazuo Ishiguro nos leva a uma longa jornada nas lembranças do mordomo. Ao longo da história, são narradas situações incríveis em que ele buscou quase de forma doentia uma saída “digna” para seus dilemas pessoais e profissionais, sempre se inspirando em pessoas que ele julgava serem o supra-sumo da dignidade. E quem melhor que um típico mordomo inglês para nos ensinar o que é dignidade? Quem pode ter mais discrição, serenidade no olhar e emoções sufocadas que um mordomo da aristocracia inglesa? E quem melhor que Anthony Hopkins para dar vida a esse personagem no cinema? Em sua melhor atuação – sim, melhor atuação de sua carreira – Anthony Hopkins personifica magicamente o mordomo Stevens, com trejeitos contidos, emoções resguardadas e vida pessoal totalmente suplantada pela vida profissional.
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O triste de acompanhar essa jornada é ver que a busca excessiva por ser um modelo de dignidade lhe custou caro, muito caro. E é aí que entram os nazistas. Fazia parte do código de conduta desse mordomo não se meter em nenhum aspecto pessoal da vida de seu patrão, o Lorde Darlington, e apenas servi-lo com a mais alta discrição e respeito. A busca pelo tom exato de cordialidade necessário para o cumprimento desse papel, sem ser invasivo demais, nem frio demais, consumia os pensamentos do mordomo. Mas e quando seu patrão, esse homem tão distinto e respeitável, se envolve “ingenuamente” com nazistas? Como separar sua opinião pessoal da profissional? Como continuar obedecendo ordens que você não concorda? Como aceitar que esse patrão que você serviu pela vida inteira com tamanha fidelidade acabou se revelando uma pessoa de moral questionável?
Você pode até pensar, ora essa, era só ele pegar a trouxinha de roupa dele e sair desse emprego, se mudar pra outra mansão e passar a servir outro patrão. O problema é que quando uma decisão questionável vem de uma pessoa que você nunca questionaria, quando uma ordem ou um conselho de moral duvidosa vem daquela pessoa que você coloca no mais alto patamar da conduta moral, aquela pessoa que você obedece e confia cegamente, como um pai, uma mãe, um marido, uma esposa, então rola uma confusão mental, não é? Você pensa “ué, se essa pessoa, a mais DIGNA que conheço, está me dizendo que isso é o certo, então deve ser o certo mesmo”. Na TV e no cinema temos muitos exemplos de situações como essa, e é sempre muito triste ver, por exemplo, um filho que confia cegamente no seu pai e acaba se metendo em situações bizarras por seguir seus conselhos. Quem não assistiu OZARK, série da Netflix, e ficou com o coração partido na cena em que o pai da Ruth manda ela cometer um assassinato? A cara dela de decepção tipo “você é meu pai, como pode me mandar fazer isso?” e ao mesmo tempo pensando “bom, se meu pai tá mandando talvez seja a coisa certa a fazer”. É uma cena desesperadora.
Mas os estragos que a busca excessiva pela dignidade causam na vida do nosso mordomo Stevens não param por aí. É impressionante ver a quantidade de camadas presentes no texto de Kazuo Ishiguro, nos mostrando sutilmente que foi na busca pela dignidade que nosso mordomo e seu patrão acabaram por perdê-la. A história, que é ao mesmo tempo extremamente fácil de ler, mas nem um pouco didática na sua mensagem final, nos prende desde a primeira página, e fica na cabeça por muito tempo depois que o livro acaba. Não foi à toa que o autor ganhou o prêmio Nobel de literatura em 2017. E a editora Companhia das Letras tratou de relançar todos os seus livros com capas lindas, lateral colorida e um selinho maroto de prêmio Nobel bem grandão na capa.
A adaptação pro cinema feita em 1994 manteve o mesmo nome do livro, “Os Vestígios do Dia”, e nos trouxe a maravilhosa Emma Thompson, perfeita no papel de governanta. Emma nos presenteia com a melhor cena do filme: quando a governanta tenta quebrar a carapaça rígida do mordomo exigindo saber que livro ele está lendo em seu momento de folga, enquanto ele, querendo preservar sua vida pessoal, não quer revelar de jeito nenhum a capa do livro. A atuação dessa dupla é DIGNA de Oscar:
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Infelizmente a película não levou nenhuma estatueta pra casa apesar das 8 indicações. Mas a justiça foi feita e o diretor do filme, que é ninguém menos que nosso querido James Ivory, ganhou o Oscar de melhor roteiro adaptado recentemente, pelo filme “Me chame pelo seu nome”.
Que junção de fatores incrível! Um prêmio Nobel de literatura. Uma adaptação pro cinema indicada a 8 Oscars. Anthony Hopkins e Emma Thompson em seus melhores papéis. James Ivory na direção. Uma história de amor de partir o coração. A busca pela dignidade que saiu pela culatra. E nazistas sendo nazistas. Se isso tudo não foi suficiente pra você, dá uma olhada em quem aparece lá na mansão de Lorde Darlington também:
E quem mais veio? O mais inglês dos ingleses, ele mesmo, Hugh Grant.
Mas calma, não acabou. Nesse elenco inacreditável temos ainda o ator Christopher Reeve antes do acidente.
Meu Deus, que elenco! Tô quase indo lá no YouTube Filmes dar play nesse filme de novo!
E pra você, o que significa dignidade? Já perdeu a sua? Não deixe de ler o livro, ver o filme e depois contar pra gente o que achou.
Até a próxima pessoal!