É com muita tristeza que faço essa resenha, pois aguardei ansiosamente pelo filme Fahrenheit 451 da HBO, apenas para constatar com muita frustração que ficou ruim, senhores, ficou muito ruim. Filme do mesmo canal que nos trouxe The Sopranos, Game of Thrones, Band of Brothers, True Blood e Westworld, e que ainda contava com Michael Shannon e Michael B. Jordan no elenco, não poderia ser ruim, certo? Até reli o livro para aguardar por esse momento, mas quando o filme foi finalmente lançado (diretamente no streaming da HBO GO sem passar pelos cinemas), minha ansiedade foi sendo substituída por imensa frustração a cada segundo em que o filme avançava. Cadê Mildred? Cadê Sabujo Mecânico? Cadê rádio-concha? Tantos elementos que eu ansiava por ver materializados na tela e simplesmente não estavam lá. O que aconteceu?
Aparentemente, na tentativa de “modernizar” o livro, trazendo elementos das nossas tecnologias atuais para a história, o roteiro foi completamente alterado e virou um filme apenas levemente inspirado no livro e não uma adaptação de fato. O que é realmente absurdo, pois o livro, escrito em 1953 por Ray Bradbury, é tão visionário e perfeito em adivinhar o futuro e prever todas as nossas problematizações atuais, que não existia a menor necessidade dessa “modernização”. O livro nos apresenta uma sociedade em que os bombeiros queimam livros, ao invés de apagar incêndios. As pessoas perderam o interesse por leitura devido a tantas distrações tecnológicas como TV e rádio, e o governo aproveitou pra proibir definitivamente os livros e transformar a sociedade numa massa de ignorantes. O grande charme de uma fiel adaptação estaria justamente em ver como um escritor de 1953 imaginou o futuro e constatar que sim, ele acertou em cada detalhe. Desde as tecnologias que ele previu até a relação que temos com elas e o impacto que elas causam na nossa sociedade, tava tudo lá. Um Black Mirror escrito em 1953. Mas mudaram tudo, numa aparente tentativa de aproximar a história da nossa realidade atual e trazer uma linguagem mais próxima aos jovens de hoje. Resultado: todo mundo saiu perdendo, tanto os fãs da obra original como o novo público do filme.
O novo roteiro criado não convence em nada o espectador, nem discute com seriedade as questões levantadas no livro, além de sofrer com péssimas atuações. A história base se manteve: o corpo de bombeiros é responsável por queimar livros ao invés de apagar incêndios. Queimam livros para “igualar” a sociedade e não permitir que uns sejam mais cultos e intelectuais que outros, para impedir que livros polêmicos ofendam determinados grupos ou minorias, para evitar que algumas histórias possam inflamar a população, para evitar guerras religiosas incentivadas por escrituras em livros sagrados etc. Proíbem-se então os livros que seriam o “foco” de todos esses problemas. Tema super interessante para ser discutido, ainda mais quando já tivemos situações reais de queimas de livros na história (inquisição, nazismo, estado islâmico, entre outros eventos). Seria melhor mesmo que fôssemos todos um rebanho de cordeirinhos ignorantes e iguais, eliminando assim todas as guerras e problemas de desigualdade no mundo? Uma pena que o filme deixa essas e outras perguntas sem resposta.
Ao manter a base, mas eliminar da história personagens importantes e tecnologias inventadas no livro, o filme se esvaziou por completo e desperdiçou elenco, produção e uma das melhores distopias já escritas. Fica nítido o dedo do diretor que transformou Michael B. Jordan, ator que roubou completamente a cena em Pantera Negra, em um ator apático e robótico que não fez jus ao Montag inquieto do livro.
Já Michael Shannon está excelente, pra variar, fazendo seu mesmo vilão creepy de sempre, mas pelo menos está convincente. É o único ponto positivo do filme.
Agora, a parte vergonhosa mesmo ficou por conta da atriz Sofia Boutella. A coitada já chegou na área prejudicada por seu papel, que é uma adaptação péssima da Clarisse do livro (vamos falar mais sobre isso à frente). Esse personagem fraco aliado a uma péssima direção e inexperiência da atriz resultaram em momentos difíceis de assistir.
Agora, se você quer entender um pouco mais da história e das diferenças entre livro e filme, vou entrar agora na zona de spoilers analisando mais detalhadamente todas as mudanças que foram feitas. Vem comigo!
O que mudou no filme?
Vou começar essa comparação resumindo o livro e, ao longo desse resumo, vou apontando o que está diferente no filme. Se você já leu o livro, mas esqueceu tudo, ou se não vai ler mas quer saber do que se trata, esse texto é pra você!
No livro acompanhamos o personagem principal Montag, um homem em torno de 30 e poucos anos, casado com a Mildred. Eles vivem num futuro onde é proibido existir livros pelos motivos que já relatei acima. Na verdade a própria sociedade foi se distanciando dos livros por causa do excesso de tecnologia: vivem em casas onde as TVs ocupam todas as paredes, usam no ouvido o tempo todo um aparelho chamado rádio-concha que não pára de transmitir conteúdo, ou seja, assim como nós, estão completamente imersos num mundo tecnológico cheio de distrações. Com isso vão se tornando pessoas superficiais, que não se importam em saber nada a fundo, muito menos ler livros inteiros.
Dessa forma as poucas pessoas que ainda tem o hábito de ler ficam muito acima intelectualmente de todo o resto do mundo e se acham, ou são consideradas, “superiores”, o que cria uma desagradável desigualdade social. Além disso, os poucos que ainda leem causam incômodos por falarem de obras que sempre desagradam algum grupo social, livros que os negros acham racista, livros que as feministas acham machista, livros que os judeus acham antissemita etc. Ao invés de apenas censurarem as obras que apresentam esses discursos de ódio, o governo simplesmente resolve proibir e queimar qualquer tipo de livro, o que é apoiado pela população.
É aí que entra Montag, nosso bombeiro. Todas as casas do mundo são à prova de fogo, portanto os bombeiros não precisam mais apagar fogo e sim são os que ateiam fogo em livros. Ao receber um chamado de alguém que denunciou que seu amigo ou vizinho tem livros em casa, lá vão os bombeiros com seus lança chamas queimar todos os livros que tem na casa da pessoa. Essa pessoa claro, é levada presa, mas se tentar fugir eles colocam em ação um cachorro mecânico, o tal do sabujo mecânico, que tem um olfato capaz de farejar em uma cidade inteira o cheiro do dito-cujo fugitivo, e persegue o sujeito sem dó até conseguir alcançar. Quando alcança, injeta nele um líquido que o paralisa.
Esse cachorro não apareceu na primeira adaptação do filme feita por François Truffaut em 1966 e também não aparece aqui no filme da HBO de 2018. Não entendo a dificuldade de incluir no filme esse raio desse cachorro mecânico que é o melhor “personagem” do livro; eu aguardava ansiosamente pra ver ele ao vivo e a cores. Por favor façam uma adaptação decente que inclua o catioríneo, eu imploro!
Voltando à história, temos a Mildred, esposa de Montag que se tornou uma mulher extremamente superficial e fria com o tempo. Não se importa com nada exceto com os programas de TV que assiste o dia inteiro. É tão viciada nas rádio-conchas que não tira nem pra dormir, e para falar com o marido ela lê seus lábios, já que não tira o aparelho barulhento do ouvido por nada. Relacionou com aquela pessoa que você nunca consegue conversar porque está sempre no celular? Não é uma previsão perfeita de como seria a sociedade do futuro? Por essas e outras não entendo por que mudar essa tecnologia e usar no filme celulares e emojis, já que a rádio-concha transmite perfeitamente a mesma mensagem do vício em celular que temos hoje. Além disso, usar uma tecnologia inventada que não existe na vida real evita que a história fique datada. Daqui a 20 anos a rádio-concha continuará sendo a mesma de Ray Bradbury, mas os celulares e emojis poderão ser tão ultrapassados que vão transformar o filme da HBO em uma obra extremamente datada e esquecível.
Mildred tem um papel fundamental na trama pois, ao tentar o suicídio logo nas primeiras páginas do livro (ou quase isso, pois tomou tantos remédios que nem se lembra de ter tomado algo), desencadeia em Montag uma sucessão de pensamentos sobre como chegaram nessa situação. E com isso ele começa a repensar toda sua vida, sua profissão, seus hábitos, e se perguntar o que há de errado com o mundo em que vivem. Aliado a isso temos Clarisse, a vizinha de 17 anos que é toda doidinha, uma personagem extremamente forçada que está ali só para ajudar Montag nesse processo de repensar a vida. Ela fala coisas como “você já olhou pro céu hoje?”, “já viu os girassóis abrindo?”, coisas bobas e clichês, mas que diferem completamente do resto daquela sociedade que está imersa nas rádio-conchas e nos programas de TV, e mal saem de casa pra ver o mundo lá fora. Convivendo com Clarisse e percebendo cada vez mais a alienação de Mildred, o personagem começa a ter um surto de infelicidade que vai catalizar e justificar todas as suas atitudes de rebeldia.
Já no filme não temos nada disso. Não tem Mildred (!!!), Montag é solteiro, e a Clarisse é uma mulher mais velha que é uma rebelde, ou seja uma pessoa que lê livros, mas que vende informação sobre outros rebeldes pros bombeiros em troca de diminuir sua pena. Como uma personagem dessa, uma traíra do movimento rebelde, vai ser a pessoa que traz pro Montag o despertar de revolta contra toda a queima de livros? Faz algum sentido? Eles ainda vivem um romancinho mega insosso. Não entendi nada sobre o porquê de tirarem Mildred e mudarem completamente o perfil da Clarisse, apenas empobreceu DEMAIS a história.
Já que no filme Montag não tem Mildred nem uma boa Clarisse, fica difícil acreditar nas suas motivações para começar a se rebelar contra o sistema. Precisaram inserir flashblacks sobre seu pai sendo um rebelde leitor de livros, e tendo os livros queimados pelos bombeiros. Então ele se lembra dele próprio criança vendo o pai perder todos os livros e isso o faz repensar sua profissão de bombeiro. Foi o jeito que encontraram pra dar motivação pro personagem fazer essa transformação de bombeiro convicto para rebelde dos livros. Não havia a menor necessidade disso, já que o livro nos deu todas as ferramentas para essa transformação acontecer.
Voltando ao livro, Montag começa a exercitar sua rebeldia em casa com Mildred, levando várias obras pra casa e tentando convencê-la a ler com ele. Ela se recusa e Montag vai atrás então de um velho conhecido chamado Faber, que era um rebelde que Montag não prendeu, desenvolveu uma simpatia pelo sujeito e deixou ele fugir. Juntos eles pensam num plano de imprimir vários livros e plantar esses livros em todos os corpos de bombeiro do país, depois ligariam para denunciá-los e começaria um vuco-vuco de bombeiros queimando os próprios bombeiros. Plano audacioso que mal começou, pois Mildred denunciou Montag aos bombeiros, que entram na sua casa para queimar tudo. Montag se defende matando o capitão Beatty, seu chefe, com um lança chamas. Queimando o cara vivo mesmo, na frente de todos.
Montag se torna então um fugitivo, perseguido pelo sabujo mecânico. Na fuga, entra num rio e tira todas as roupas para que o sabujo não consiga mais farejar seu cheiro. Seguindo o rio, ele chega a uma comunidade de rebeldes que vivem na floresta, e cada um deles memorizou um livro famoso. Eles não possuem nenhum livro e por isso não tem motivo para serem presos, mas são livros ambulantes, pois cada um tem um livro na memória. Eles contam pra Montag que existem milhares de pessoas em todo país que também são livros ambulantes, e o convidam pra morar com ele e ser um livro ambulante também. E esse é o final do livro.
Vamos então agora entender como o filme estragou esse final (e todo o resto da história também né). Montag estava lá no romance insosso com a Clarisse, enquanto ficava demonstrando pro seu chefe Beatty que estava virando um rebeldinho. Dizendo que queria entender por que eles queimam livros e que não concordava com isso.
Meu deus, qual o sentido da pessoa falar isso justo pro chefe que é o cara responsável por mandar queimar e prender todo mundo ao menor sinal de rebeldia? É claro que não ia dar bom:
Esse personagem do chefe, o capitão Beatty, é o único que se assemelha realmente com sua versão do livro, pois é um cara durão porém condescendente, que finge entender os questionamentos de Montag, enquanto o pressiona a andar na linha.
Esse personagem também é interessante porque fica recitando trechos de livros e poemas, mas como ninguém conhece livro nenhum, ninguém percebe. Ele representa o clássico cérebro por trás dos fundamentalismos e ditaduras, o cara que sabe que tudo aquilo é errado, e ele próprio não segue nada do que prega, mas está sempre doutrinando e enquadrando tudo e todos.
No filme é Clarisse que leva Montag para o acampamento de rebeldes que são os livros ambulantes. Só que eles tem um trunfo na manga, que é o tal do Omnis, uma tecnologia que insere no DNA de uma célula todo o conhecimento do mundo. Pode rir, a piada é essa.
Os rebeldes explicam pro Montag que inseriram o Omnis no DNA de um pássaro e esse pássaro vai voar até o Canadá, onde os cientistas de lá vão removê-lo e inserir em outros animais até multiplicar isso pra todos os animais do mundo. Pode rir, a piada continua sendo essa.
Depois de todo esse rolê com os rebeldes, Montag volta pro corpo de bombeiros COMO SE NADA TIVESSE ACONTECIDO, e finge que continua sendo um bombeirão da poha, convicto e doido pra queimar uns livros. Claro que seu chefe já tá ligado em todas as movimentações e a próxima missão passa a ser uma batida na casa do próprio Montag para flagrar seus livros.
No livro isso tinha sido muito mais interessante, pois foi sua própria esposa Mildred que tinha denunciado os livros na casa deles. Ok, então chegando à casa, o capitão Beatty força Montag a queimar todos os livros e a casa inteira também. Cheio de raiva ele pega o lança chamas e atira em um colega de trabalho bombeiro (?) e depois causa uma explosão e foge. Volta então pra casa dos rebeldes e é seguido pelos bombeiros, que ao chegarem lá queimam tudo. Beatty queima Montag vivo, mas antes de morrer ele consegue soltar o pássaro que continha o tal do Omnis. Você ficou confuso? Parabéns, é pra ficar mesmo, pois esse é o nível da bagunça do roteiro que eles escreveram.
Por que ele mata um colega de trabalho qualquer, ao invés de matar Beatty? Por que no fim do filme é Beatty que mata Montag ao invés de ser o contrário, como no livro? Era muito melhor Montag matando o seu chefe, pois é o ápice da sua revolta, quando se rebela contra a pessoa responsável por toda a queimação de livros, e também por toda a lavagem cerebral feita em sua cabeça. Mas não, fazem o contrário, Beatty mata Montag mas ele solta o pássaro liberando todo o conhecimento do mundo no DNA do pássaro e sendo o herói do dia.
Ah gente, que decepção. Uma obra dessa genialidade ser transformada num filme todo bagunçado, mal atuado e que perdeu totalmente o foco da proposta original. Eu só espero que, caso pensem em uma nova adaptação dos livros 1984 e Admirável Mundo Novo, não deixem cair nas mãos da HBO novamente.
E você curtiu o filme? Deixa sua opinião aí embaixo, nóis quer saber!
E até a próxima pessoal!
One thought on “Comparação livro e filme Fahrenheit 451”-
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