Em tempos sombrios de retomada de discursos fascistas como estamos presenciando, nada melhor que um recente compilado de textos do George Orwell para nos lembrar o que é fascismo. Lançado em 2017 pela Companhia das Letras, o livro “O que é fascismo e outros ensaios” reúne textos publicados em jornais da época (entre 1930 e 1940), quando Orwell atuava ativamente como jornalista, e conta com várias de suas resenhas de livros e análises sobre a situação política daquele momento. Como essa época foi marcada justamente pela Segunda Guerra Mundial, temos nesses textos um fiel retrato desse período, com análises brilhantes de Orwell, que parecia ser dos únicos que conseguia entender a real gravidade das coisas que estavam se desenrolando, especialmente o fascismo.
O livro é imperdível para quem gosta do tema, mas mesmo pra quem ainda não tem os romances famosos de Orwell guardadinhos no fundo do coração, esse novo compilado de textos é muito necessário para nos ajudar a entender, reconhecer e tentar frear a ascensão do fascismo. Se você não tá na pilha de ler, cola aqui que fiz um resumão com as melhores partes do livro!
O que é fascismo?
O texto que dá nome ao livro tem apenas 5 páginas e foi publicado originalmente no Tribune em 1944. Nele, Orwell tenta definir o que é fascismo. E aí se depara com a enorme dificuldade de enumerar quais as características desse regime, já que cada grupo político chama seu antagonista de fascista, ou seja, do ponto de vista de cada pessoa o fascista é sempre o seu inimigo, e dessa forma todos os grupos sociais de características opostas seriam fascistas do ponto de vista de alguém.
Ele desmembra os diversos grupos sociais e políticos do momento explicando como cada um chama seu oposto de fascista:
Conservadores: São tidos como fascistas por seus opositores, os progressistas.
Realmente podemos observar atualmente que os conservadores tem propensão a simpatizar com o fascismo, uma vez que vêem o fascismo como um regime que “colocaria ordem na casa”, “manteria bandidos na cadeia” e também evitaria a proliferação de idéias progressistas como o movimento feminista e LGBT (movimentos demonizados pelos conservadores). Para manter a sociedade longe desse progresso social onde mulheres, gays, negros e pobres conquistariam os direitos que há muito tempo pertenceram só aos homens brancos, é preciso uma boa dose de ditadura e violência para calar esses movimentos. Por isso o fascismo é visto muitas vezes como um mal necessário pelos conservadores, pois para eles nesses casos os fins justificariam os meios.
Muitos conservadores repetem frases como “ah, a ditadura não torturava qualquer pessoa, só bandidos”, acreditando que se você andar na linha não seria uma vítima da brutalidade desse regime. Esse pensamento além de ser absurdo por aceitar a tortura, ignora o quão arbitrário é a decisão sobre “quem é bandido”, ou seja, qualquer um poderia ser preso e torturado sem motivo aparente e ser chamado de “bandido”.
No livro, Orwell não afirma que conservadores são fascistas, ele apenas observa que conservadores são tidos como fascistas pelos seus opositores assim como todos os grupos são chamados de fascistas por seu grupo opositor.
Trazendo para atualidade, eu também não estou afirmando que todos os conservadores são fascistas, apenas percebo que dentro do discurso de alguns conversadores radicais é possível encontrar aceitação ao fascismo com o objetivo de frear movimentos progressistas, mas esse fato acontece em todos os grupos que defendem radicalmente alguma ideia conforme Orwell observou.
Socialistas: São considerados fascistas por grupos capitalistas.
Mesmo que as ideias socialistas não sejam originalmente totalitárias, o socialismo soviético se desenrolou da forma mais totalitária e violenta possível e foi o responsável por 15 milhões de mortes* (os números divergem muito de acordo com cada historiador, veja esse artigo da wikipedia). Ou seja, basta alguém começar a defender o socialismo que esse argumento logo é lançado, “Você defende um regime que assassinou milhões de pessoas? Então você defende o fascismo!”. O que logo é rebatido com “mas o socialismo soviético não representou fielmente os ideais socialistas…” e temos então uma discussão interminável.
Orwell era de fato um defensor das ideias socialistas e lutava contra injustiças sociais, porém era também um forte defensor da democracia e por isso se opôs tanto ao regime de Stalin. Mais uma vez aqui ele não afirma que socialistas são fascistas apenas observa que esse grupo também é chamado de fascista por seus opositores.
Católicos: Na análise de Orwell, naquele momento da história a igreja católica era quase universalmente tida como pró-fascista. Ele não explica o porquê nem enumera os grupos que fazem essa crítica à igreja, mas é sabido que durante o nazismo a igreja católica fez acordos com a Alemanha Nazista e com Mussolini, não necessariamente por concordar com esses regimes mas porque achava a ameaça comunista soviética um mal maior, afinal comunistas são ateus e a união soviética perseguia os crentes. Então os acordos eram no sentido de manter o poder da igreja dentro dos regimes totalitários que vinham crescendo e “proteger” a religião do comunismo.
Os pacifistas: todos os que resistem à guerra e se opõem à entrada de suas respectivas nações na guerra foram taxados de pró-fascistas. Pois se não queriam combater o nazismo então estariam ajudando a perpetuá-lo.
Os militaristas: Orwell afirma que a esquerda tende a equiparar militarismo com fascismo.
Realmente militarismo e fascismo andam de mãos dadas já que é preciso um grande exército para colocar em prática os planos de expansão e domínio totalitaristas. Porém Orwell nos lembra que algumas ditaduras sul-americanas e a ditadura portuguesa não eram fortemente belicistas ou seja, esse também não seria um critério para se definir o que é fascismo. Além do mais um país que se militariza excessivamente não necessariamente tem intuito fascista, as vezes o faz por ter justamente que lutar contra os fascistas ou terroristas.
Nacionalistas: O nacionalismo é considerado inerentemente fascista, mas ele ressalta, mais uma vez, que os grupos nacionalistas consideram sempre “o outro” como fascista e não a si mesmo. Ou seja numa disputa territorial onde 2 povos lutam pela soberania de um determinado espaço, ambos exaltarão o nacionalismo e ambos serão taxados de fascistas pelo outro.
Eu pessoalmente gosto da expressão “Nacionalismo, te faz sentir orgulho por coisas que você não fez e odiar pessoas que você não conhece”. E também concordo com Einstein quando ele afirma: “O nacionalismo é uma doença infantil; é o sarampo da humanidade”.
Depois de enumerar todos esses grupos Orwell conclui que a palavra fascismo acaba sendo desprovida de significado já que é usada em toda ocasião que alguém queira xingar uma pessoa que pensa diferente. Ou seja, acaba virando apenas um palavrão, “é como chamar alguém de troglodita”, ele diz. Isso fica muito claro nesse meme maravilhoso:
Orwell termina o texto questionando, “Mas se o fascismo é um sistema político e econômico, por que não podemos ter dele uma definição clara e aceita por todos?”. E então responde: “Porque seria impossível definir fascismo sem admitir coisas que nem os próprios fascistas, nem os conservadores, nem socialistas de nenhuma matiz querem admitir”. Como diria Nelson Rodrigues, “nenhum idiota se diz idiota”:
“O ser humano é cego para os próprios defeitos. Jamais um vilão do cinema mudo proclamou-se vilão. Nem o idiota se diz idiota. Os defeitos existem dentro de nós, ativos e militantes, mas inconfessos. Nunca vi um sujeito vir à boca de cena e anunciar, de testa erguida: – Senhoras e senhores, eu sou um canalha.”
Algum fascista vai admitir ser fascista, se fascista é o pior tipo de palavrão que existe? Por isso nenhuma definição de fascismo é aceita por todos.
No fundo no fundo, nós sabemos o que é fascismo se nos depararmos com ele certo? Segundo a Wikipedia:
“Os movimentos fascistas compartilham certas características comuns, incluindo a veneração ao Estado, a devoção a um líder forte e uma ênfase em ultranacionalismo, etnocentrismo e militarismo. O fascismo vê a violência política, a guerra, e o imperialismo como meios para alcançar o rejuvenescimento nacional e afirma que as nações e raças consideradas superiores devem obter espaço deslocando ou eliminando aquelas consideradas fracas ou inferiores”.
Com esse trechinho pareceu realmente fácil definir o fascismo, e por isso mesmo análise de Orwell é tão contundente. Se parece tão óbvio, por que então grupos antagônicos são igualmente chamados de fascistas ao mesmo tempo que todos negam serem? A mensagem final do texto de Orwell é justamente que se use a palavra quando realmente for o caso de usá-la ao invés de “degradá-la ao nível de palavrão” e assim desprovê-la de significado.
Sem contar os Crioulos
Neste outro texto excelente, Orwell avalia o livro Union Now de Clarence K. Streit, onde este propõe que as 15 maiores democracias do mundo deveriam se unir em um bloco único (União Européia, é você?), e se opor às ditaduras. A contradição aparece quando, ao enumerar as 15 “democracias”, no meio delas estão o Império Britânico, a França, a Bélgica e a Holanda, países que dividiram o mundo em colônias que eram exploradas, ocupadas e controladas com mão de ferro. Como esses países podem se dizer democracias combatentes da ditadura se eles próprios também expandiram seu domínio pelo mundo subjugando outras nações, exatamente como o nazismo tentava fazer? No livro de Streit ainda é dito que ao criar esse bloco “democrático”, as colônias deveriam permanecer colônias, seus recursos deveriam ser repartidos entre todos os membros do bloco, e seus habitantes negros continuariam desprovidos de direitos como voto (???). Ou seja vamos criar um bloco da paz “sem contar os crioulos”, ironiza Orwell. Eu pessoalmente achei essa colocação sensacional pois revela a hipocrisia contida no livro de Streit. Orwell critica duramente esse livro e também os países imperialistas dizendo “como querem combater o nazismo de Hitler se fortalecem uma injustiça muito mais ampla?”.
Analisando o que a Inglaterra e a França são hoje, e o que o mundo teria sido caso o nazismo tivesse vencido, é fácil para nós expelir um “ufa” aliviado pelos imperialistas terem ganhado a guerra e não os nazistas. Mas imagine para um jornalista político da época, observando os impérios britânicos e franceses criticando o nazismo que ainda estava surgindo, mas que visava o mesmo expansionismo que os britânicos e franceses já tinham consolidado ao redor do mundo? Dá pra entender que ele use o termo “injustiça mais ampla”, já que os horrores do nazismo ainda não eram tão conhecidos, enquanto os domínios dos imperialismo britânico e francês pelo mundo já eram há muito tempo consolidados.
Resenha do livro “Nós” de Ievgueni Zamiatin
Não sei se vocês sabem do babado mas George Orwell é acusado de plágio por ter supostamente copiado o livro “Nós” quando escreveu “1984”. Desde que eu soube dessa treta, e como sou super fã de “1984”, corri pra procurar esse livro “Nós”. porém ele é russo, e só apareceu numa versão em português decente por aqui em 2017, nessa capa dura maravilhosa da editora Aleph:
O interessante é que no livro “O que é fascismo…” Orwell faz a resenha desse livro “Nós” (1924), insinuando que o livro “Admirável Mundo Novo” (1932) se originou dele:
“A primeira coisa que qualquer um notaria a respeito de NÓS é o fato de que Admirável Mundo Novo deve, em parte originar-se dele. A atmosfera dos dois livros é semelhante. E, em linhas gerais, é o mesmo tipo de sociedade que está sendo descrito, embora o livro de Huxley demonstre menos consciência política.”
O irônico é que 3 anos depois de escrever essa resenha, em 1949, Orwell publicou “1984”, e podemos fazer a mesma crítica a ele: tem muito de “Nós” e de “Admirável mundo novo” em seu “1984”. E não dá pra negar que Orwell bebeu dessa fonte, já que não só leu como resenhou ambos os livros.
Podemos considerar então que Zamiatin, o escritor russo até então desconhecido, é mesmo o precursor desse tipo de distopia, mas não devemos por isso diminuir o valor de nenhuma das distopias que vieram na sequência. Cada uma tem sua particularidade e faz um alerta importante para os regimes que devemos lutar para evitar.
Em “Admirável mundo novo” temos uma sociedade controlada pela lavagem cerebral e pelo uso de drogas, onde as pessoas são literalmente dopadas pelo governo. Além de elevar o “pão e circo” às últimas consequências, obrigando as pessoas a se divertirem e fazerem sexo constante para estarem sempre felizes e satisfeitas.
Já “1984” nos apresenta um totalitarismo completamente diferente deste, com um clima tenso e deprimente onde as pessoas vivem sem nenhum prazer e a sociedade é controlada na base da violência e repressão mesmo.
Há ainda Fahrenheit 451 (que já resenhamos aqui), que também nos apresenta uma sociedade controlada pelo fascismo, numa mistura de repressão intelectual e “pão e circo”.
Todos esses livros são importantes por nos mostrar todas as formas possíveis de se instaurar um governo totalitário, e portanto são livros necessários especialmente nos tempos atuais, onde temos políticos ganhando destaque e seguidores justamente por proclamarem discursos claramente fascistas.
São muitos os trechos e resenhas super interessantes do livro “O que é fascismo e outros ensaios”, se você gostou e leu até aqui vai lá e compra o livrinho, você não vai se arrepender! 😉
Até a próxima pessoal!