O chamado das montanhas

Tempos atrás, sugada pela 4ª dimensão do Pinterest, me deparei com vários pins com essa frase abaixo:

Como gosto muito de montanhas, repinei um desses pro meu board. E sempre que olhava pra esse pin, me sentia especialmente atraída. Até que um dia me deparei do nada com uma notícia chocante enquanto rolava minha timeline do Facebook. O título era “O problemas com o excesso de corpos no Everest”.

As pessoas morrem e ficam lá, não são retiradas.

Pensei, como assim, excesso de corpos? Sem ter nenhum conhecimento prévio sobre o que se passava no Everest, fui ler a matéria e ela desencadeou em mim um surto de fixação no assunto montanhismo. Especialmente montanhismo em alta montanha, como o Everest, K2 e outras montanhas acima dos 8 mil metros de altura. Acho que a fixação nesse tema se deu por tentar entender por que as pessoas arriscam tanto a vida para chegar lá, no topo do mundo. Eu queria entender esse chamado das montanhas que tantos dizem ouvir e quem sabe assim entender de onde vem essa voz que me chama pras montanhas também.

Foi assim que cheguei ao livro “No ar rarefeito” do Jon Krakauer. Krakauer é jornalista, montanhista e também muso inspirador de muitos aventureiros.

Ele também é autor do best-seller aclamado “Into the wild”. No livro “No ar rarefeito” ele narra o acidente mais famoso da história do Everest em que ele estava presente e sobreviveu, e aproveita pra analisar a paixão dos homens pelas montanhas. Por algum motivo esse acidente tem uma história viciante e exerce grande fascínio nos amantes das montanhas. Vários livros já foram escritos sobre ele; praticamente cada sobrevivente escreveu um livro diferente com o seu ponto de vista.

 Sim, são todos sobre o mesmo acidente

Mas o que diferencia Krakauer dos outros autores que escrevem sobre esse tema é sua sinceridade. Ele diz coisas como “me arrependo de ter ido ao Everest, nunca voltaria lá, se você estiver pensando em ir, desista”. Ao contrário de outros autores que, mesmo sem os braços ou pernas amputados por causa do frio que passaram na montanha, romantizam a situação e dizem “são marcas da vida, das experiências, não me arrependo de nada”. É gritante a diferença com que Krakauer lida com as dificuldades da vida do montanhista e como os outros montanhistas relatam suas perdas. Fica claro que embora aficcionado pelas montanhas, Krakauer tem mais amor pela sua vida. Ele é também um pessimista-realista, o que muito me atrai porque também sou assim. Enquanto outros montanhistas conseguem ver o lado bom das tragédias que passaram escalando montanhas, tirando aprendizados disso e seguindo em frente, Krakauer diz que não houve nada de bom em ter passado pelo grave acidente, que sua vida mudou pra pior depois disso e que ele não consegue superar o trauma. É difícil ver autores expondo a verdade nua e crua sem romantização assim como ele faz e foi ali que ele me conquistou. Acho que é exatamente como eu reagiria se tivesse passado por um acidente como o dele.

Mas como se escala o Everest e por que é tão perigoso? E por que mesmo com tanta dificuldade as pessoas continuam seguindo em frente, rumo ao topo, sem olhar pra trás? Preparei um breve resumo pra gente tentar entender:

  • Os primeiros homens a conseguir escalar o Everest foram o neozelandês Edmund Hillary e o sherpa Tenzing Norway em 1953. Sherpas são os habitantes locais, quase mutantes que tem uma capacidade pulmonar absurda, pois são totalmente adaptados ao ar rarefeito das montanhas do Nepal.
    Edmund Hillary e o sherpa Tenzing Norway
    Sherpas

    Antes de Edmund e Tenzing, muitos tentaram sem sucesso e perderam a vida na montanha. George Mallory foi um montanhista famoso que tentou a façanha em 1924, e anos depois seu corpo foi encontrado por outro famoso montanhista, Conrad Anker, e tinha indícios de que tinha chegado ao topo, mas morreu no caminho de volta. É de Mallory a resposta famosa pra pergunta “Por que escalar o Everest?”. “Porque ele está lá”, respondeu. Essa frase é repetida incessantemente pelos montanhistas que tentam chegar ao topo como explicação para sua escalada. Mas isso não é o motivo em si. É apenas a constatação que basta a montanha estar lá para exercer o fascínio que exerce. E que ela exerce esse fascínio a gente já sabe. Mas então por que escalar? Já vamos chegar mais perto dessa resposta…

  • Depois de Hillary e Tenzing, muitos montanhistas profissionais alcançaram o topo seguindo a mesma rota que eles.
    Rota mais comumente usada, pela face sul, no Nepal

    Mas somente nos anos 90 a subida se popularizou por causa de 2 montanhistas concorrentes que começaram a levar clientes ao topo criando excursões turísticas. O americano Scott Fisher e o neozelandês Rob Hall criaram agências de turismo para levar clientes inexperientes, pessoas que nunca conseguiriam sozinhas.

    Scott Fisher e Rob Hall

    Claro, eles eram amparados por uma enorme quantidade de sherpas que, além de serem guias, levam também nas costas todas as tralhas necessárias para as expedições: mochilas, barracas, panelas, comida, garrafas de oxigênio etc.

    Eles vão carregados assim mesmo, né brinquedo não!

    E aí os turistas vem atrás leves e faceiros subindo a montanha, já com as cordas fixadas pelos sherpas. Muita moleza, né não? Essa “facilidade” criada pelas excursões turísticas foi condenada pelo próprio Edmund Hillary, que disse que quem subia dessa forma não pode considerar que subiu de fato. “Por mais montanhistas raiz e menos montanhistas Nutella, ele falou”. Mentira, eram os anos 90 e ainda não existia esse meme, mais ele disse algo parecido.

  • É aí que Jon Krakauer aparece na jogada. Ele foi contratado pela revista Outside para fazer uma matéria sobre a quantidade de turistas subindo o Everest e o perigo causado pelos inconsequentes turistas e guias.
    Fica cheio tipo assim gente! TEM FI-LA pra subir.
    Everest craudeado!

    Krakauer se juntou à expedição de Rob Hall para subir a montanha e escrever sobre a experiência. Mas tudo saiu muito, muito, MUITO errado. Rob Hall e Scott Fisher, os 2 guias “rivais” das principais expedições daquele ano de 1996, morreram na montanha em decorrência de uma sequência de erros que Krakauer descreve minunciosamente no livro “No ar rarefeito”. Outros turistas que pertenciam a essas expedições também morreram. E o triste é que, lendo a narrativa, você percebe que mesmo à beira da morte eles continuavam subindo a montanha, sem desistir e regressar para um local seguro. É a chamada “febre do cume”, nome que se dá quando o êxtase de se chegar ao topo é tão grande que te impede de pensar racionalmente e desistir antes que seja tarde demais.

  • Tá, mas você não explicou como faz pra subir. Ah sim é verdade. Vamos lá. Esse método criado pelo Rob Hall é usado até hoje pelos montanhistas e consiste em fazer “ciclos de aclimatação”, subindo e descendo a montanha várias vezes para o corpo se acostumar com a altitude. Todo o ciclo demora em torno de 2 meses. Sim, entre 1 mês e meio e 2 meses dependendo do preparo físico do montanhista. E você desembolsa em torno de R$ 200 mil reais para poder participar de uma expedição. Puxado, né?
  • O trekking para o campo base do Everest começa na cidade de Lukla e dura 6 dias. Chegando lá, são montados os acampamentos base de todas as expedições. E ficam também os telefones por satélite, base médica, estoques de mantimentos, oxigênio etc.
    Campo base do Everest. E já dá pra ver o topo com a fumacinha característica saindo dele.

    De lá partimos para os ciclos de aclimatação. Primeiro para o Campo 1, que fica logo depois de passar pela ASSUSTADORA geleira Khumbu.

    Geleira norose

    Essa geleira começa logo no campo base e ela não é mole não, é a parte mais perigosa do caminho. Pedaços imensos de neve, os seracs, podem se desprender e cair a qualquer momento em cima de você.

    Seracs

    Fendas imensas, as crevasses, podem estar escondidas por neve e aí tchau, tchau, montanhista. Para passar de um lado da fenda pra o outro utilizam-se essas escadas, fixadas pelos sherpas.


    Tem coragi?

    Só nesse lance aí eu já tinha desistido. Mentira, no trekking até o campo base eu já tinha desistido porque não tem lugar pra tomar banho. Mas o pior é que você tem que passar MUITAS E MUITAS VEZES por essa geleira por causa do bendito ciclo de aclimatação. Sobe e desce, sobe e desce várias vezes até o corpo acostumar com a altitude lembra? Então cada montanhista passa em média 6 vezes por essa geleira. SURREAL.

  • Passando a geleira chegamos ao Campo 1, montamos nossos barracas e passamos uma noite dormindo/aclimatando para depois descer ao campo base novamente. Descansamos e subimos de novo, agora até o Campo 2, que fica no meio do Vale do silêncio. Essa é das partes mais lindas e quentes do caminho, porque é um “corredor” formado entre a parede do Everest e do Nuptse, montanha vizinha do Everest, e os paredões das montanhas bloqueiam o vento ali. Fica então um imenso vale nevado sem vento, sem barulho, sem nada. Krakauer narrou ter fritado de calor nesse vale.
    Vale do silêncio ou Western CWM
    Campo 1, logo após a geleira Khumbu

     

    Campo 2 – Sol se pondo na parede do Lhotse
  • Depois de uma noite no Campo 2, descemos tudo de novo até o campo base. Energia recarregada, voltamos então a subir, dessa vez até o Campo 3, que fica na face do Lhotse. Sim, é preciso subir um pedaço da face do Lhotse para então fazer a curva e começar a subir a crista do Everest. Esse é o caminho usado por Hillary e Norgay, então quem somos nós pra questionar? Muito íngreme e com ventos terríveis nessa parte do caminho.
    Campo 3 – Já vemos o vale do silêncio ficando pra trás

    Subida do Lhotse
  • Depois de uma noite no Campo 3 bora descer tudo de novo. E você acha que a galera desiste depois desse sobe e desce todo? Que nada, estão tomados pela febre do cume. Depois de voltar ao acampamento base, subimos novamente até o Campo 3 e nos preparamos para o ciclo do cume, ou ataque ao cume. Que é o dia em que você vai de fato subir até o cume, subindo primeiro até o Campo 4, passando algumas horas lá pra descansar e depois então subindo até o topo numa escalada que demora em média 12 horas (só esse pedaço do Campo 4 ao cume e voltar). Surreal, né?
    Campo 4 – o cume já parece bem pertinho mas ainda faltam 6 horas de caminhada

    E isso tudo embaixo de um frio de até -40º e com o ar já totalmente rarefeito. É a chamada zona da morte, acima dos 8 mil metros de altura, e ao adentrar essa zona o corpo começa de fato a morrer lentamente. Os montanhistas não podem passar mais de 2 dias aqui e devem sempre usar o oxigênio engarrafado para evitar a hipoxia, que é o baixo teor de oxigênio no cérebro, que causa alucinação e muitos erros na tomada de decisões em momentos que podem ser fatais para os montanhistas.

  • Depois de algumas horas descansando no Campo 4, se é que é possível com o barulho de vento, o frio, a falta de oxigênio no cérebro, dores de cabeça, medo do vento levar a barraca embora, cansaço extremo, saudade de casa etc, chegou a hora de subir até o cume. Os montanhistas começam a subida por volta das 4h da manhã. Assim, pretendem alcançar o cume até as 10h e voltar ao acampamento 4 até as 16h. Atrasos nesse cronograma podem ser fatais, já que o tempo pode mudar rapidamente no fim da tarde e pegar os montanhistas que estão voltando desprevenidos. Já cansados e sem forças, enfrentar ainda uma onda de frio inesperado ou tempestade nessa etapa seria fatal. Rob Hall que o diga.

    Oba! Chegamos ao cume! Foto do primeiro brasileiro que conquistou o topo em 1995, Waldemar Niclevicz
  • Agora podemos voltar ao Campo 4 e descansar um pouco, bem pouco, pois temos que sair o mais rápido possível da zona da morte. Podemos descer parando nos acampamentos 3, 2 e 1 pra descansar ou descer direto até o campo base, dando por finalizada a nossa jornada. Tenso, não? Agora imagina que no meio disso tudo tragédias vão acontecendo no caminho. Um colega da sua equipe tem que amputar a perna porque congelou. O outro fica com cegueira por causa do brilho da neve e não tem mais como andar sozinho. Um sherpa cai numa fenda. Um guia tem edema cerebral causado por hipoxia. A multidão se acumula nas cordas e se formam filas enormes pra descer ou subir, acabando com seu estoque de oxigênio. Etc, etc, etc. Isso foi parte do que a equipe de Rob Hall passou naquele dia e é o que muitos passam ao escalar o Everest ou montanhas do tipo.
    Nessa parte, que é das mais difíceis do caminho (a subida do paredão Hillary), a fila é longa e enquanto espera você vai consumindo seu oxigênio engarrafado até ele acabar. Momentos de muito tensão!

    Essas dificuldades, porém, muitas vezes não assustam o suficiente pessoas que já estão tomadas pela febre do cume. Elas pensam, ah, comigo isso não vai acontecer, o cume já está ali no meu campo de visão rapidinho eu chego lá e volto em segurança. E o que acontece com a maioria é que eles juntam todas as suas forças pra subir mas não guardam nenhuma pra voltar.

Agora que você já sabe o perrengue sinistro que esse povo passa tentando subir o Everest, vamos à análise sobre a motivação dos homens para subir as montanhas. Não guardar forças pra voltar significa algo muito importante. Significa que o topo era sua única motivação na vida, e nada do que tem aqui embaixo te motiva a persistir para voltar. Ele ainda vai mais longe e chega à conclusão de que, para muitas pessoas, a montanha vira um objetivo a ser alcançado numa vida que antes era vazia e não tinha nenhum objetivo. É como dar um senso de propósito a alguém que não via propósito nenhum na vida. Muitos montanhistas tem esse perfil. Não se sentem bem, nem felizes longe das montanhas. A vida só tem sentido e vivacidade pra eles quando tem um topo como objetivo a ser alcançado. Fora dali, nada mais instiga o mesmo interesse.

Alguns montanhistas narram também a imensa paz que é estar numa montanha altíssima, a sensação de estar praticamente sozinho num lugar imenso, coisa que quem mora em cidade grande nunca sente. Outros relatam também as belezas das paisagens.

Tudo isso é com certeza lindo e me motiva também. Mas como isso pode ser mais importante que a sua própria vida? Quando colocamos essa vontade de “ver lindas paisagens” e “estar em paz no silêncio de uma linda vista” acima da nossa própria segurança, algo está errado e não parece que seja esse o motivo de correr o risco. Alguns citam também o risco pelo risco, a adrenalina, o vício na aventura perigosa. Mas isso não seria também a mesma falta de propósito na vida que falamos ali em cima? Quando falta um senso de propósito pra sua vida “aqui embaixo”, essa vida tem menos sentido e, consequentemente, menos valor. Portanto, correr riscos de vida em nome de um propósito que te conquiste passa a fazer mais sentido.

Psicólogos já avaliaram também que a vontade de se jogar numa atividade extremamente perigosa pode ser uma reação a um medo que você deseja controlar. Você tem medo de altura então escala para superar esse medo, vencer e sentir que tem o controle da sua própria vida. Outro ponto também relatado é se embrenhar numa atividade difícil para se livrar de algum outro ponto mais difícil ainda que a pessoa estava tendo que lidar na vida: um casamento fracassado, um parente doente, filhos difíceis. Dessa forma, arruma-se um propósito para se livrar de outros mais incômodos. Guardadas as devidas proporções, eu entendo isso, pois muitas vezes vou lavar a louça ou limpar a casa (coisas bem chatas de fazer) porque quero procrastinar um trabalho chato que tenho que entregar.

Mas talvez o maior motivador de toda essa turma de montanhistas seja o ego, a vontade de contar pra todo mundo que subiu o Everest. Ser considerado bravo, corajoso, capaz, aventureiro, desbravador na sua comunidade local, único entre muitos. Como afirmou o jornalista Billi Bierling: “Alguém uma vez disse que escalar o Everest é um desafio, mas o maior desafio seria escalá-lo e não contar a ninguém”.

E você, entende a motivação de se arriscar na montanha mais alta do mundo? Conta pra gente!

 

Post Author: Ana Campos

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