Centro cultural João Nogueira, sábado, oito da noite. Plateia lotada. A peça era Elza, o musical. As cortinas se abrem e 7 mulheres negras estão de pé. Uma delas (Larissa Luz) começa a falar e me sobe o primeiro arrepio de muitos que ainda viriam: parecia a própria Elza, de muitos anos atrás.
Além da semelhança física, a atriz Larissa Luz incorporou a cantora de tal forma que, se ela não fosse viva, eu afirmaria que estava diante de uma manifestação sobrenatural. Coisa surreal mesmo.
Durante a peça, ao mesmo tempo em que vão relatando os acontecimentos da vida da artista, as atrizes usam suas músicas para falar de questões sociais e políticas. É o caso da música Maria da Vila Matilde: nela, a cantora fala que vai ligar pro 180 (Central de atendimento à mulher) e denunciar as agressões sofridas por um homem. E completa: cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim. Na vida real, Elza foi agredida pelos dois maridos, fato comum naquela época e, infelizmente, ainda hoje. Só que a força interior dessa mulher é tão grande, que ela transforma o sofrimento em energia pra seguir encantando o mundo com a sua voz.
E sofrimento foi o que não faltou em sua vida: casou obrigada aos 12 anos, perdeu 4 filhos (sendo 2 por desnutrição), teve sua casa metralhada durante a ditadura, perdeu a mãe num acidente de carro enquanto seu marido, Mané Garrincha, dirigia, enfim: não faltaram motivos para desistir. Mas Elza canalizou toda a tristeza para a carreira, transformando a dor em arte por meio de sua voz inigualável; prova disso são os prêmios e homenagens conquistados durante a carreira.
Seu último trabalho, A mulher do fim do mundo, levou o Grammy latino e o Prêmio da música brasileira como melhor álbum. O disco tem músicas excelentes e emblemáticas, como Mulher do fim do mundo. Nela, Elza repete como se fosse um mantra poderoso: Eu quero cantar até o fim / Me deixem cantar até o fim. Tive a sorte e o prazer de assistir seu show ao vivo no fim do ano passado, no festival WOW (Women Of the World), e vê-la entoando esse “mantra” ao vivo foi comovente, pra dizer o mínimo. Apesar de não se movimentar mais no palco, sua voz parece mais potente do que nunca e toca fundo na alma.
O musical e a vida de Elza são a prova de que a arte é um canal de transformação poderosíssimo e fundamental. Como foi dito numa das frases da peça, “não é preciso portar armas, é preciso portar voz”. E a voz de artistas como Elza Soares ecoará para sempre resistindo, protestando, debochando, encantando, e nos inspirando a fazer o mesmo, apesar de todos os esforços para nos calar.